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quinta-feira, 17 de outubro de 2019

AS LEIS, OS NEGÓCIOS E O CÓDIGO DE HAMURABI

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                  A Babilônia tinha um bem desenvolvido sistema de finanças. Não tinham moeda cunhada, mas ainda antes de Hamurábi usavam, além do trigo e da cevada, lingotes de ouro como padrões de valor e instrumentos de troca. O metal era pesado em cada transação. A menor unidade monetária consistia no shekel - meia onça de prata no valor de dois e meio a cinco dólares de hoje. Empréstimos eram feitos em mercadorias, em metal com garantia e a altos juros, fixados pelo estado em 20% anuais para aquele cuja garantia eram os metais, e 33% para os em mercadorias; Cabia aos escribas a tarefa de enganar a lei e conseguir taxas mais altas. Não havia bancos; mas certas famílias poderosas, entretanto, dedicavam-se tradicionalmente ao negócio de emprestar dinheiro; também negociavam com letras e empresas industriais; e as pessoas que tinham fundos em depósito com tal gente pagavam suas obrigações por meio de saques. Também os sacerdotes emprestavam dinheiro, sobretudo para custeio da lavoura. Ocasionalmente a lei tomava o partido do devedor; se um camponês hipotecava suas terras e as via sem colheita por força de temporais ou "outro ato de Deus", não era obrigado a pagar os juros daquele ano. Mas quase sempre formulavam-se as leis com os olhos na propriedade, para garantir-la da melhor maneira; era o princípio estabelecido na Babilônia que ninguém tinha o direito de tomar dinheiro sem por ele responsabilizar-se de maneira absoluta; O credor, portanto, escravizar o devedor, ou o seu filho, até que o débito fosse saldado, mas não por mais de três anos. A praga da usura assolou a indústria da babilônia, como nos acontece hoje.
                Era uma civilização essencialmente comercial. A maior parte dos documentos sobreviventes é de caráter comercial - vendas, empréstimos, contratos, sociedades, comissões, permutas, doações e legados, acordos, notas promissórias, etc. Nestas tabelas encontramos abundante prova de riqueza babilônica e um certo espírito materialista que, como civilizações posteriores, conciliava a ganância com a piedade. Vemos na literatura muitos  sinais de vida ocupada e próspera, mas também, a cada passo, reminiscências de escravidão abaixo de todas as culturas. Os mais interessantes contratos de venda são os relacionados a escravos. Eram recrutados entre os prisioneiros de guerra, ou os apresados pelos beduínos errantes em suas incursões pelas estados próximos, e também produzidos pelo entusiasmo reprodutor dos próprios escravos. A maior parte do trabalho urbano era feito por eles, e também o serviço doméstico. As escravas viviam completamente à mercê de seus compradores, e tinham de os sustentar; estava subentendido que o senhor podia extrair delas a prole que quisesse, e as que não eram tratadas assim se sentiam desonradas. O escravo, com tudo que fosse, pertencia ao senhor, podia ser vendido ou empenhado por dívida; podia ser morto, se o senhor o achasse conveniente; se fugia, a ninguém era dado açoitá-lo, e havia recompensa para quem o capturasse. Do mesmo modo que o camponês livre. era o escravo sujeito ao serviço militar e aos trabalhos públicos forçados. Em compensação o senhor pagava-lhe a conta do médico e conservava-o na doença, no desemprego e na velhice. Podia o escravo casar-se com mulher livre e nesse caso seus filhos nasciam livres; e ao morrer, metade de suas propriedades iam para a sua família. Podia ser posto em negócio autônomo, recebendo parte dos lucros, com os quais lhe era permitido resgatar-se: ou o senhor o alforriava por motivos de gratidão. Bem poucos tinham tal sorte. A grande massa se consolava com a reprodução, até se tornarem mais numerosos que os livres. Uma classe escrava movia-se subterraneamente e em ascensão, nos alicerces do estado babilônico. 
                   Tal sociedade, sem dúvida, nunca cogitou alguma espécie de democracia; seu caráter econômico impunha uma monarquia sustentada pela riqueza mercantil e pelo privilégio feudal, e protegida por uma judiciosa distribuição de violência da lei. A aristocracia territorial, gradualmente deslocava pela plutocracia comercial, ajudou a manter o controle da sociedade e serviu como intermediária entre o povo e o rei. O rei transmitia o trono a qualquer dos seus filhos, de modo que todos se consideravam pretendentes e mantinham claques de secretários empenhados em seu acesso. Dentro dos limites deste governo arbitrário a administração era conduzida pelos senhores e prepostos nomeados pelo rei. Tais homens recebiam conselho e eram fiscalizados por assembleias provinciais de velhos ou notáveis, que procuravam manter, mesmo sob dominação assíria, uma orgulhosa autonomia local. 
                 Cada administrador, e comumente o próprio soberano, reconhecida a autoridade do grande corpo de leis que lhes fora dado por Hamurábi  e que, através de quinze séculos, apesar das mudanças, se manteve nas linhas essenciais. O desenvolvimento legal era da sanção sobrenatural para a secular, da severidade para a leniência, e dos castigos corporais para as multas. Nos primeiros tempos esteve em uso o apelo aos deuses por meio do ordálio. O homem acusado de feitiçaria ou a mulher acusada de adultério tinham de lançar-se no rio; se se salvavam, eram inocentes, e os deuses se punham sempre do lado dos bons nadadores. Se a mulher emergia viva, era inocente; se o "feiticeiro" morria afogado, o acusador herdava os seus bens; em caso reverso, era ele quem recebia os bens do acusador. Os primeiros juízes foram os sacerdotes, e até o fim da história babilônica os tribunais se reuniam nos templos; mas já nos dias de Hamurábi se haviam tornado seculares e só responsáveis perante o governo. 
                  A penalidade começou com a Les-talionis ou a lei da equivalente retaliação. Se um quebrava um dente ou uma perna de outro, também lhe quebravam o mesmo dente e a mesma perna. Se uma casa caía e matava o comprador, o arquiteto tinha de morrer; se o acidente matava o filho do comprador, o filho do arquiteto tinha de morrer; se um homem ofendia uma rapariga ou a matava, sua filha tinha de passar pelo mesmo. Gradualmente essas punições foram sendo substituídas por multas e pagamentos de danos; um pagamento em dinheiro liberava o culpado da pena de talião. Assim, um olho podia ser esmurrado por sessenta sikels de prata, e o de um escravo pela metade disso. Porque as penas variavam não só com a gravidade do delito como ainda com a importância do ofensor e da vítima. Um membro da aristocracia era sujeito a penas mais severas do que as recaídas sobre o homem do povo, mas a ofensa  a um aristocrata custava muito caro. O plebeu que feria outro plebeu pagava de sikels; a mesma ofensa a um nobre custava-lhe seis vezes mais. Disso passou a lei às bárbaras penas de amputação de morte. O filho que batia no pai tinha as mãos cortadas; o doutor, cujo doente moria ou perdia um olho na operação, tinha os dedos cortados; a ama que substituía uma criança por outra, perdia os seios. A morte era a pena para grande número de crimes: violência carnal, rapto, bandidismo, roubo, incesto, morte do marido pela mulher para casar-se com outro, aberturas da taverna, ou mesmo a entrada de uma sacerdotisa em taverna, açoitamento de escravo fugitivo, covardia nas batalhas, malfeitoria nos cargos, desleixo e esbanjamento caseiro, etc. Com esses bárbaros processos, através de milhares de anos, aquelas tradições hábitos de ordem e continência foram estabelecidos de modo a se tornarem base inconsciente de civilização. 
                Dentro de certos limites o Estado regulava os preços, salários e honorários. O que o médico podia cobrar estava previsto na lei; e no código de Hamurábi foram fixados salários para construtores, pedreiros, carpinteiros, barqueiros, pastores e trabalhadores agrícolas. os filhos herdavam, e não a viúva; esta recebia o seu dote e ficava na chefia dos lar enquanto vivesse. Não existia o direito de primogenitura; os filhos herdavam com igualdade, e deste modo os grandes domínios logo se subdividiam, o que embaraçava o acúmulo de riqueza. A propriedade privada em terras e bens era assegurada pelo código. 
               Não encontramos sinais de advogados na Babilônia; os "padres" serviam como notários e os escribas como redatores de tudo, madrigais ou testamentos. O queixoso defendia-se  a si mesmo sem nenhum luxo técnico. Nada de estímulo às demandas; o primeiro artigo do código reza com muita simplicidade: "Se um homem acusa outro de crime capital e não o prova, o acusador receberá a morte". Há sinais de suborno e da manipulação de testemunhas. Ima corte de apelação, formada pelos " juízes do rei", tinha assento na cidade; a decisão suprema cabia ao rei . Nada existe no código sobre os direitos dos particulares contra o estado; Isso iria ser uma inovação européia. mas os artigos 22 e 24 asseguravam proteção econômica. "Se um homem pratica banditismo e é capturado, que seja morto; se não é capturado pode, na presença de "deus", declarar a sua perda, e a cidade e o governador, dentro de cuja jurisdição o fato se deu, o indenizarão da perda. Se houver perda de vida, a cidade e o governador pagarão uma mina aos herdeiros". Que cidade moderna se sente bem governada a ponto de reembolsar as vítimas da negligência pública? Progrediram as leis desde o tempo de Hamurábi ou apenas se multiplicaram? 


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